domingo, 27 de junho de 2010

Estatuto da igualdade racial: a aprovação de uma farsa

Projeto marca um retrocesso nas reivindicações históricas do movimento, como a política de cotas

Cláudia Durans, docente da UFMA, e Hertz Dias

Foi com entusiasmo que o ex-ministro da Igualdade Racial Edson Santos celebrou a aprovação do Estatuto da (des)Igualdade Racial pelo Senado. Mas não há nada o que comemorar, pois o texto não representa as reivindicações históricas do povo negro. O estatuto, durante o tempo em que tramitou no Congresso, sofreu ataques da direita e de setores burgueses até ser aprovado totalmente diferente do projeto original.

O fato revela o cinismo e a perversidade da burguesia racista, herdeira econômica, política e culturalmente dos escravocratas, que pretende continuar mantendo a exploração, a opressão e a humilhação da população negra.

A expectativa era de que o Estatuto da Igualdade Racial fosse um instrumento que de fato contribuísse para enfrentar a discriminação racial. E que também estabelecesse políticas de ações afirmativas para garantir os direitos essenciais dos afrodescendentes vitimados pelo processo de histórico de escravidão.

No entanto, o que poderia ter sido um avanço não passou de um acordo entre o PT, através do senador Paulo Paim (RS), a SEPPIR (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial) e representantes do agronegócio e ruralistas, por meio do senador Demóstenes Torres (DEM-GO), relator na Comissão de Constituição e Justiça.

Assim, o estatuto aprovado é a síntese mais fiel da aliança de forças nacionais que representa o governo Lula. A secretaria de igualdade racial deste governo nada fez de concreto para reduzir as desigualdades raciais no Brasil. Ao contrário, não passou de acessório, de uma simbologia racial para cooptar parte da militância negra.

Desta forma, o estatuto aprovado suprimiu pontos importantes como as cotas para negros nas universidades públicas, o que não nos causa espanto, pois o relator defende as “cotas sociais” e não raciais, e que o acesso à universidade deve ser baseado no “princípio do mérito e da capacidade de cada um”.

Da mesma forma, foram suprimidas as cotas do mercado de trabalho, assim como a redução do percentual de 30% para 10% de cotas reservadas à participação de negros em partidos políticos.

Outro aspecto importante excluído do texto original foi o que tratava da regularização de terras para remanescentes de quilombos, um erro muito grave. A retirada deste tema não considera os quilombolas como proprietários de territórios historicamente ocupados, como forma de sobrevivência física e cultural desta população. Acrescentou-se a esse documento o incentivo fiscal que o governo poderá dar a empresas com mais de 20 funcionários que decidirem contratar pelo menos 20% de negros.

Há ainda neste estatuto erros gravíssimos do ponto de vista conceitual, a exemplo da retirada das categorias raça, escravidão e identidade negra. No que se refere a raça, o argumento utilizado enfatiza que do ponto de vista genético as raças não existem. No entanto, como conceito social, esta categoria ganhou um novo significado através do movimento negro e por intelectuais de várias áreas de conhecimento. O sentido é o de deixar clara a hierarquização da sociedade brasileira, na qual os grupos étnicos foram e são marcados por profundas desigualdades e discriminações.

Na mesma direção, foi rejeitado o termo escravidão, pois ele foi considerado como tradicional e inadequado, pois se trata de algo do passado. Como a sociedade brasileira está em transição, emergindo para uma sociedade democrática, com propostas de ações afirmativas que visam acabar com as desigualdades sociais, “escravidão” não seria o termo mais adequado.

Ora, a escravidão do negro no Brasil durou quase quatrocentos anos, em contraste com apenas 122 anos de trabalho livre, o que constitui uma prolongada experiência histórica que até hoje deixa marcas profundas nessa população, tanto no que se refere ao acesso aos bens materiais e culturais, como na dificuldade de construção da identidade étnica.

Não restam dúvidas que o Estado brasileiro tem uma dívida histórica com o povo negro. O estatuto seria uma forma de buscar assegurar direitos políticos, econômicos, sociais e culturais desta população, através de uma política de ações afirmativas que dessem conta das demandas históricas.

Precisamos desfazer os mitos junto à população submetida à miséria, à violência cotidiana e aos programas assistencialistas, que reiteram a subalternidade e retiram a dignidade do ser humano. Assim como o significado do governo Lula, que tem suas raízes no movimento operário, que confirma as políticas racistas e reacionárias do DEM, impossibilitando o acesso da juventude à educação superior, da população negra a políticas de saúde diferenciadas, dos remanescentes de quilombo à terra.

Somamo-nos às 24 organizações do movimento negro que se manifestam contra a versão atual do Estatuto da Igualdade Racial, esvaziado de conteúdo de justiça racial. O estatuto aprovado não tem força de lei, foi rebaixado, tendo o caráter de apenas autorizar e não determinar, fazer cumprir. Isto fica visível inclusive com a retirada de recursos para sua execução pelos gestores, que não são obrigados a colocarem-no em prática.

O estatuto está na contramão dos avanços nas lutas institucionais do movimento negro contra o racismo, a exemplo da política de cotas implementada em muitas universidades públicas.

Conclamamos a juventude, as trabalhadoras e os trabalhadores negros para a luta contra a dominação racista, contra a exploração, por melhores condições de trabalho e de existência, para que reine a liberdade e as diferenças sejam respeitadas. Em defesa das cotas para negros nas universidades públicas! Pela titulação de terra aos remanescentes de quilombos!

fonte: Jornal "Opinião Socialista"

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Para movimento negro, Estatuto da Igualdade Racial perde força com a retirada de pontos importantes

Roberta Lopes,  Repórter da Agência Brasil

Brasília - O Estatuto da Igualdade Racial é um instrumento legal importante, mas perdeu a força por deixar de fora pontos importantes para o movimento negro, como as cotas nas universidades e nos partidos políticos e as políticas para a saúde negra, afirmou hoje (17) a coordenadora do Movimento Negro Unificado (MNU) do Distrito Federal, Jacira da Silva. O texto foi aprovado pelo Senado na noite de ontem (16).

Para ela, o texto aprovado, que vai para sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, é uma versão descaracterizada do texto original. “Em nome da negociação se chegou a essa versão final. Como instrumento legal é muito importante, mas se retirou quatro ou mais itens que eram a espinha dorsal do estatuto. É uma ação na contramão da política do governo”, analisou.

Jacira se refere à questão das cotas para negros dentro dos partidos políticos, das cotas raciais em universidades, da política de saúde e da questão da posse da terra para comunidades remanescentes de quilombos. Esses pontos foram retirados por meio de acordo para que a votação no plenário do Senado Federal ocorresse.

De acordo com Jacira, a garantia das cotas raciais é importante para reduzir disparidades. “As universidades federais e as não federais já adotaram o sistema de cotas raciais, e digo cotas raciais porque as cotas sociais permeiam qualquer tipo de discriminação, e a questão etnorracial está presente desde a época da abolição da escravatura no Brasil", afirmou.

Sobre as políticas para saúde, ela destacou a existência de doenças que têm maior incidência na população negra. “Estamos reivindicando, como direito de cidadania, uma política para saúde voltada para as incidências de doenças e prevenções que acometem a população negra. É uma questão genética e não política”, observou.

A médica e Coordenadora da Comissão Intersetorial de Saúde da População Negra, Jurema Werneck, afirmou que a maior parte dos problemas de saúde que afetam a população negra está direta ou indiretamente ligada ao preconceito. “No caso das mulheres grávidas, por exemplo, nós temos os casos de hipertensão, que afetam mais mulheres negras”, explicou.

Ela disse ainda que as mulheres negras, quando expostas à discriminação, acabam não tendo acesso a meios de prevenção de doenças e a um pré-natal de qualidade. “Muitas vezes também não são repassadas informações de maneira correta. Elas enfrentam muitas dificuldades que estão relacionadas ao preconceito racial”, observou.

Outro ponto importante para o movimento negro que foi suprimido no texto final foi a questão da posse da terra. De acordo com Jacira, grileiros e “coronéis” estão tomando as terras e empreendimentos como hidrelétricas estão “expulsando” populações remanescentes de quilombos que estão há mais de 200 anos no local.

Jacira disse ainda que é uma responsabilidade de todos os parlamentares aprovar as leis que estão em tramitação no Congresso Nacional, como a que diz respeito a cotas raciais nas universidade, para preencher as lacunas deixadas pelos pontos que ficaram de fora do estatuto.

“A sociedade precisa desses mecanismos e precisamos que as leis que estão no Congresso sejam aprovadas para garantir nossa liberdade de expressão, de defender socialmente nosso direito à saúde, educação, que são direitos vitais garantidos pela Constituição Federal”, disse.

Edição: Lílian Beraldo